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domingo, 9 de abril de 2017

Uma cidade possível se constrói coletivamente

Uma cidade possível se constrói coletivamente
o que há por trás da crise urban
aProfessora Ermina Maricato - USP

Um das mais importantes vozes sobre a questão da crise urbana e o acesso à cidade, a arquiteta, professora da USP e da Unicamp, doutora em Economia, Erminia Maricato, falou com a UEE-SP  e  expôs os aspectos que "gritam" na cidade e as deixam menos democráticas.
Saiba que isso influencia diretamente na sua vida, no tempo que leva para levar na faculdade, na segurança do seu bairro. E desde já saiba da necessidade de se pensar de maneira coletiva para que haja transformações positivas de fato na cidade, deixar a individualidade de lado, que como a professora defendeu, as mudanças só ocorrem pensando coletivamente.

* Para contextualizar, o que e uma "Cidade Democrática", na sua opinião, a partir dos seus estudos e pesquisas?

Para começar, no sistema capitalista é impossível pensar em um cidade totalmente democrática. A produção do espaço urbano se baseia numa lei econômica de valorização do metro quadrado, que tem tudo a ver com a localização. Seguindo essa lógica, existem localizações melhores que outras.
Uma vez que 70% do emprego fica no centro expandido da região metropolitana, que é composta por 139 municípios, logo, essa região concentra as melhores formas de mobilidade, de transportes, melhores condições de saneamento, luz, escolas e universidades. Muitas pessoas que trabalham nesse centro levam duas horas, em média, por viagem, para chegar na sua  finalidade. 
Assim, a localização tem um preço. Se eu moro num bairro, periférico, criatório de mosquitos, onde mais se disseminam as doenças, locais de mais violência, menos serviços públicos à disposição, então temos uma condição muito diferente comparada a de quem vive na região central. Portanto, a partir dessa análise, exemplifico, que nossas cidades são muito pouco democráticas, são desiguais e segregadas.

*O que é o conceito de Analfabetismo Urbanístico, utilizado em suas teses, livros e textos? E como seria sua erradicação?

 Existe uma representação da cidade, na mídia, na universidade, na opinião pública, que encobre a cidade real. Eu tomo uma parte dela, como ela é, e a outra parte é ignorada pelas instituições e pelas representações simbólicas.
Quando eu tenho a ocupação de um prédio ocioso no centro de São Paulo, e acontece o despejo, ele é dado em favor de proprietários que nem cumprem a função social da propriedade, do espaço ou nem pagam o IPTU.
Por outro lado, temos cerca de 2 milhões de pessoas morando ilegalmente em regiões de proteção de mananciais, o que compromete toda a água utilizada na cidade.  
Então, dá para ver que a lei é aplicada de cabeça para baixo. Há permissão de moradias em regiões ilegais por pessoas pobres, porém afastadas do centro e nesse  é aplicado o despejo, mesmo em propriedades ociosas.
Segue-se assim a lei do mercado. A área de proteção de mananciais não é importante para o mercado, e o centro é!
Os pobres não têm acesso ao mercado imobiliário legal, formal e nem à politicas publicas, moram, assim, ilegalmente.

Se conhecemos a realidade, cobramos as instituições para que a lei seja aplicada. Imóveis vazios em áreas bem localizadas e ociosos, não cumprem a função social da propriedade. Tínhamos em São Paulo, há alguns anos atrás, 400 mil imóveis vazios que daria para abrigar o déficit habitacional da cidade. Nós temos lei para que os imóveis vazios sejam punidos, mas as leis não são aplicadas.  Temos muita contradição na aplicação das leis e elas são aplicadas de acordo com as circunstâncias de classe social. E como é possível que isso aconteça? Porque a cidade é desconhecida.
Se nossos gestores, poder judiciário, ministério público conhecessem a cidade e a legislação nós não teríamos 2 milhões de pessoas morando em área de proteção dos mananciais  e perdendo a garantia da nossa água.Não é que a população pobre é contra a lei e o meio ambiente. Nós "combinamos" essa exclusão com um mercado imobiliário altamente especulativo.
Quando eu vejo o prefeito de São Paulo, João Dória, falar em "Cidade Linda" e proibir o Grafitti, ele está olhando apenas para aquele núcleo central, que é branco, de classe média e alta, E na periferia vale tudo, inclusive entupir os córregos com lixo, porque é muito difícil coletar em um ambiente de ocupação desenfreada.
Isso tudo, as incoerências, são características do analfabetismo urbanístico e também da extrema desigualdade na aplicação das regras, leis, investimentos e de como as instituições trabalham nesse ambiente de desigualdade.
O judiciário e parlamento sofrem de analfabetismo urbanístico e essa cegueira cria o ocultamento da periferia, ela não tem voz. 

E essa regra do mercado tem relação com os despejos, que chamam de "reintegração de posse" e os incêndios que acontecem nas favelas?

Se fossemos desocupar tudo que é ilegal, seria desocupado 20% da cidade de São Paulo. Eu olho para a lei e para essa cidade eu vejo que não dá para aplicar a legislação. Eu não olho para ela e sim para o processo.
O juiz pensa naquele pedaço de cidade, na propriedade. A constituição brasileira assegura o direito à moradia. Já o direito à propriedade na constituição não é límpido, ele é relativizado pela função social, ele é limitado. E o processo é julgado apenas pelo direito à propriedade e não pela moradia.
 O despejo é feito de forma violenta, quando o mercado imobiliário está mais aquecido. Nosso mercado passou por um aquecimento muito forte entre 2009 e 2014, foi um dos maiores aumentos de valor de imóveis no mundo. Foi um período de muitos despejos e incêndios violentos em favelas bem localizadas. Lógico que acontecem incêndios por conta da improvisação elétrica, mas houve um aumento nesse período.

Como desenvolver um olhar crítico sobre a crise urbana?

Ninguem consegue se informar pela grande mídia, ela não informa sobre a realidade urbana. É preciso ler e assistir com uma visão crítica. Na grande mídia não tem  informação para acabar com o analfabetismo urbanístico, já que é uma visão completamente distorcida do que é a cidade  A gente precisaria desenvolver uma outra mídia se a gente quisesse tem informações mais precisas e científicas. 
 Precisamos estudar e pesquisar. Talvez uma pessoa que vivencie a cidade na periferia tenha mais capacidade de entender o que é a cidade, do que uma pessoa de classe média. 

Quais são os principais impasses para desenvolver cidades mais democráticas?

 As cidades são objetos de lucro capitais específicos, que ganham com a exploração do espaço: a incorporação imobiliária, a construção, as empreiteiras, capital financeiro imobiliário e os proprietários de terra. 
Esses capitais em conjunto com o judiciário, legislativo, executivo, formam a chamada máquina do crescimento - ela domina os espaços de melhor localização e avança com movimentos expulsão, segregação, gentrificação. E no Brasil eles têm um poder muito grande sobre os orçamentos públicos. Os custos e a localização das obras.  Veja como exemplo os monotrilhos que são construídos em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, eles não  são voltados para a maior parte da população, que passa horas, parte do dia nos transportes.  Eles seguem um roteiro, um projeto que foi traçado pela máquina do crescimento, pelo capital imobiliário, uma vez que esses investimentos acrescentam valor ao terrenos e imóveis ao redor.
Em São Paulo temos dois monotrilhos em construção, um pra Guarulhos e outro para Congonhas. Eles não são voltados para suprir a mobilidade das massas e sim para as pessoas que vão viajar de avião.

Enquanto isso a maior parte dos trabalhadores, que vem para o centro da cidade, passa horas nos transportes para poder trabalhar, muitas vezes nas casas de pessoas dessa "mancha" central, de população branca e renda média e alta na cidade.
Esse é o país que criou o orçamento participativo,  que deu lição ao mudo em urbanização de favelas, com programas de moradia, com boa arquitetura e baixo preço. Mas nós perdemos quando o dinheiro apareceu nos "PAC´s", " Minha Casa, Minha vida", e a maquina do crescimento ganhou domínio sobre as cidades, muito nessa simbiose de financiamento de campanha e investimento de acordo com interesse das maquinas de crescimento. 

E o acesso e o direito à cidade? Como podemos avançar?

Nós tivemos um circulo virtuoso nas cidades, que resultou da luta contra a ditadura, e foram criadas propostas de reforma urbana, do orçamento participativo e de todas as propostas ligadas à moradia e participação, e olhamos para a cidade segregada para transformá-la.
O importante de olhar para nosso história recente é pra perceber que a gente avançou durante um período no direito à cidade, com muitos programas, e entender a questão dos capitais. Pois avançamos enquanto estávamos sob austeridade fiscal, não tínhamos recursos para políticas públicas, quando  apareceram os recursos do PAC e o Minha Casa, Minha Vida, a discussão democrática da cidade caiu. 
 Os espaços de participação continuaram existindo,porém nós perdemos o controle sobre os fundos públicos e não completamos a luta pela democratização da terra e da terra urbanizada.
Portanto, é extremamente necessário entender a questão da atuação dos capitais para pensar em avanços.

Como a educação pode ajudar nesse processo?

A educação pode mudar tudo! Quando eu converso com educadores eu fico emocionada. Se cada criança entendesse o território onde mora, entender o que aconteceu com os rios,  que foram tamponados para passar avenidas por cima, e os solos  foram sendo impermeabilizados e essa é a causa das enchentes, muda muita coisa no entendimento da cidade.
É muito importante conhecer seu território para definir seu lugar ao mundo. Estudantes da USP em grande maioria não sabem que a 40 km da Praça da Sé nós temos Mata Atlântica original, com uma das maiores biodiversidades do mundo.
Então, educação, é fundamental porque o conhecimento leva à ação. Temos leis, mas quem rege é a luta de classes. Impossível pensar que as pessoas ficariam paradas se soubesse do patrimônio ambiental que herdamos e estamos vendendo por ocupação predatória nas cidades.

Qual o papel da sociedade e do estudante nessa mudança de olhar ? 

Hoje existe uma qualidade ética nessa nova geração. Ela é muito menos preconceituosa, principalmente quanto à raça, e as mulheres estão com outra pegada.  É Um momento único, com ânsia de empoderamento.
Porém ainda existe a consciência que a saída é individual. É o domínio do mercado na formação da consciência. E não é nossa consciência que produz nossa condição de vida, e sim o contrário!
Como escapar dessa alienação, do fetiche da mercadoria, do "deus" do consumo?  Escapamos pelo conhecimento, por meio da atividade coletiva. Não tem outra saída. O problema da água, do alimento sem agrotóxico, da proliferação dos mosquitos, a questão do bom transporte e da mobilidade não são resolvidos individualmente.

Quando o estudante se informar ele cria outra consciência, que não adianta a previdência privada para se aposentar, procurar emprego para suprir as necessidades e crescer, porque a precarização do emprego faz parte do sistema capitalista.
Tenho encontrado bastante receptividade bem mais que anteriormente. Os jovens tem toda condição de assumir uma mudança na história do pais e não é em curto prazo, é feita passo a passo. Devemos deixar de lado a ansiedade de lado nesse momento, a transformação virá com o tempo.
A falta de confiança na política  e a despolitização feita pela mídia, favorece apenas a consciência individual. As pessoas não acreditam no social, no trabalho coletivo.  Precisamos derrubar essa consciência e ilusão de si mesmo, e "militar " para alcançar mais pessoas e mostrar que a realidade não é a da mídia. 

Fonte: UEE/SP

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