Fiquei bem decepcionada com os comentários no post (e fora dele) sobre o Happy Hour da Empregada na Veterinária da USP.
Foi um festival de "ninguém força calouro a participar de trote ou de festa". Discussão sobre por que alunos de uma universidade (que deveria ser um lugar de transformação, não de perpetuação de preconceitos) acham ok serem machistas, racistas, classistas e homofóbicos? Não trabalhamos. E é exatamente essa a questão.
Semana passada chegou pra mim uma excelente entrevista com dois professores da USP que estudaram trotes. Suas conclusões:
“É no trote que se testa quem aceita submissão, que depois, no segundo ano, para pertencer ao grupo, você precisa dar trote. Então tem muitos alunos que passam por todos os trotes no primeiro ano e depois não conseguem dar o trote no segundo ano e são marginalizados pelos trotistas.”
Pois é, o trote é mais que um rito de passagem: é um teste pra ver quem será eternamente submissx. E mais, segundo os professores:
“A universidade quer o trote, aí é que está o problema. Há muitos professores e dirigentes que querem o trote. Primeiro para formar uma falange política dentro da universidade. Uma falange que apoie as propostas conservadoras e que apoie esses dirigentes conservadores. Portanto, uma das coisas que está presente no trote é a idolatria da instituição. […] O trote é fundamental para formar uma falange política coesa e obediente que vai fazer aquilo que as pessoas que estão no topo da hierarquia mandam.”
Com as mulheres, o trote faz a subjugação de quem já é subjugada pela sociedade.
Neste final de semana, enquanto eu estava em Volta Redonda, mais duas notícias me chegaram sobre machismo na USP.
Primeiro a K. me enviou este relato: "Desde o seu texto sobre o Miss Bixete em São Carlos eu fiquei abismada. Afinal, no meu campus, mesmo sendo de Engenharia, nunca senti o machismo com essa intensidade, tanto que cheguei a duvidar de que tal coisa poderia acontecer no meu mundinho da USP, mas aí eu encontrei isso".
E K. me envia um texto. O assunto foi matéria do G1 ontem, sempre com aquela construção linguística raramente vista quando se fala de outros crimes, mas tão comum em casos de estupro: "Aluna da USP diz ter sido estuprada por colegas em festa em Lorena".
"Sexta-feira 26/04, uma aluna da Escola de Engenharia de Lorena sofreu violação a dignidade sexual e estupro (como consta no Boletim de Ocorrência), em uma república da faculdade.
Ela foi chamada para ir a uma festa na república. Chegando lá, por volta das 20h30min, estava o garoto que a convidou, um amigo dele que não é da faculdade e uma garota da faculdade e moradora do prédio. A segunda garota teve que ir embora e ficaram apenas os três no apartamento. Alguns instantes depois, momento em que a vítima olhava a rua pela janela do apartamento, ambos chegaram por trás e começaram a passar as mãos pelo seu corpo, tentando, inclusive beijá-la. Repreendendo as atitudes de ambos, a vítima começou a chorar e saiu de perto, pedindo inclusive a chave apara ir embora, ato negado pelos caras.
Para se resguardar, a vítima foi para um quarto e por lá permaneceu por algum tempo. Com o forçar da porta, que estava trancada, os dois que já estavam no apartamento e outro morador, também da faculdade, entraram no quarto e começaram a conversar com a vítima. De repente todos partiram para cima da garota e arrancaram-lhe a roupa, deixando-a apenas de calcinha. Beijaram e agarraram a garota forçosa e grosseiramente. Um dos garotos deixou de prosseguir com o ato e ficou assistindo tudo, enquanto os outros dois continuaram. Só pararam quando ela começou a gritar e bater neles. E então permitiram que ela fosse embora, por volta das 23h.
Enquanto o abuso sexual contra mulheres não for encarado como crime pela maior parte da sociedade, casos como esse continuaram existindo. De forma nenhuma esta luta deve ser encarada como uma questão individual. Uma questão onde supostamente a subjetividade impera. A violência contra a mulher é um tema onde devemos sim meter a colher.
A violência contra as mulher é uma violação aos direitos humanos, considerada pela OEA como uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres que conduziram à dominação e à discriminação contra as mulheres pelos homens e que impedem o pleno avanço das mulheres. Não podemos permitir que os violadores de direitos sigam impunes!
Para a gestão Juntos Pela EEL! do Diretório Acadêmico (D.A.) da EEL-USP e para a gestão Não vou me adaptar!, do DCE-Livre da USP, isso é inadmissível e vamos ajudar a aluna da Escola de Engenharia de Lorena no que precisar.
O D.A. e o DCE-Livre da USP ampliarão a campanha em toda Escola de Engenharia de Lorena contra o machismo, a violência e a opressão das mulheres. Por todas as vias possíveis: pela internet, nos cursos, salas de aula, centros acadêmicos e ruas. Devemos pintar a EEL-USP de roxo e jamais permitir que situações de violência e opressão tenham espaço entre os estudantes da nossa Universidade. Fazemos um chamado a todas as entidades e coletivos do movimento estudantil de dentro e fora da USP, bem como o conjunto do movimento social brasileiro, a rechaçar toda forma de machismo, violência e opressão contra as mulheres.
Machismo, violência e opressão contra as mulheres: Não passarão!"
Típico, não? Essa história me fez lembrar de dois casos que aconteceram comigo. Um deles foi a minha mais terrível história de horror, porque um carinha pensou que, se eu transei com ele, eu poderia transar também com seu primo. Felizmente eu me dei conta, saí de lá, e eles não tentaram me impedir, mas a humilhação de não ter minhas escolhas respeitadas é marcante.
No outro caso eu já não era mais adolescente. 23 anos atrás, quando eu estava trabalhando, de passagem por Fortaleza, peguei carona com um grupo de três rapazes que tinha conhecido num bar. Não havia absolutamente nenhuma conotação sexual na conversa que tivemos no bar, ninguém tinha bebido demais (eu não bebo). E, no entanto, os universitários pararam o carro na garagem de um deles e só queriam me levar até meu hotel (foi pra isso que eu aceitei a carona, ué) se eu subisse com eles até o apartamento. Se eu tivesse subido, não tenho dúvidas que os acontecimentos seriam bem parecidos com o da aluna de Lorena.
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De alunos da Universidade Federal de Pelotas, abril 2013. |
Também recebi um outro email, sem muita relação com o estupro em Lorena.
A J. me enviou este email: "Sou da Frente Feminista de São Carlos, que organizou a intervenção contra o Miss Bixete no início do ano. A intervenção e a repercussão nos renderam bons frutos e colocaram o debate sobre a questão de gênero no campus. O GAP (Grupo de Apoio à Putaria) teve que responder a muitos questionamentos, e alguns integrantes foram punidos pelo CAASO, ou tiveram que fazer serviço comunitários.
Quando achamos que eles iriam ficar um pouco mais tranquilos, recebi essa foto com uma camiseta que eles estão vendendo, com um hino que eles cantam sobre as meninas da Biologia. Mais uma tradição machista universitária! [clique para ampliar].
Há relatos de meninas que estavam com o casaco da biologia e que, quando encontraram um grupo de meninos, eles cantavam esse hino pra elas na rua! Isso é muito ofensivo!
As meninas da Biologia tem muita vontade de fazer alguma coisa, mas existe o receio de provocar esse grupo. Algumas colocam que eles não vão mudar ou que eles não vão ouvir, mas acredito que fazer algo é necessário não para atingi-los, mas para atingir as próprias meninas que acabam naturalizando ou tentando ignorar esse absurdo.
Os posts do seu blog foram muito importantes para nós no Miss Bixete, pois além de serem escritos com um olhar atento às questões de gênero mais sutis, conseguiu ganhar uma maior magnitude e seriedade."
Que injusto, dirão alguns, que eu coloque esses dois casos no mesmo post. Um caso de um estupro junto a um relato de mais uma "brincadeirinha inocente" desses carinhas tão bacanas do GAP... Acontece que, como já mostrei aqui,essa mentalidade de ver mulheres como bonecas infláveis, como seres inferiores, sem autonomia, ou como animais "no cio" (como revela o hino -- aliás, por que diabos homem hétero reclama de mulheres que fazem muito sexo e gostam? Deveria estar comemorando!) muitas vezes leva à violência.
Uma leitora aqui do blog, muito antes desses escândalos referentes a São Carlos, contou o estupro que sofreu numa festa em 2008, quando era estudante da USP de lá. Depois ela revelou que o estuprador era do mesmo GAP.
Mês passado, também em São Carlos, um estudante de 22 anos denunciou à polícia que, enquanto estava no alojamento da USP, foi cercado por oito universitários que o obrigaram a tocar no pênis deles e queriam forçá-lo a fazer sexo oral.
Quantos casos serão necessários para que as pessoas vejam que há uma forte relação entre as "brincadeiras" dos trotes e festas machistas com o estupro? Ou pelo menos com a perpetuação dos preconceitos que não raro levam ao estupro?
Não são casos isolados. São comuns. Para falar sobre eles, o DCE Livre irá promover um ato-debate. Será esta quinta, às 18 horas, no Auditório de História da USP. Eu estarei lá. Espero que você também (e, se você não é da USP, organize eventos na sua universidade para refletir sobre essas práticas ultrapassadas disfarçadas de tradição).
O machismo não deveria ter espaço em lugar nenhum. Muito menos numa universidade pública.
Fonte> Escreva Lola Escreva.