O socialismo nada tem a ver com um mundo desbotado, uniforme, sem graça, em que populações famintas e sexualmente reprimidas cultuam tiranos. Existem três casos para definirmos as pessoas que confundem o socialismo com Estados operários deformados: são aquelas que agem como papagaios de pirata nas redes sociais, aquelas que compraram narrativas da mídia burguesa ou ainda aquelas que são abertamente fascistas.
Estas mesmas pessoas fazem questão de maltratar a imaginação, de reprimir a poesia que escapa ao valor de troca. Na luta pela destruição das cadeias do capital, existe um projeto de cultura revolucionária em que o sonho não é intruso ou parêntesis da vida. Tal projeto contempla a importância fundamental do Surrealismo na luta anticapitalista.
Como observou certa vez Mário Pedrosa, o revolucionário sonha... Este último não pode deixar de levar em conta que os séculos de opressão das classes dominantes sobre classes dominadas( em determinados períodos da história), privaram a humanidade de conhecer profundamente sua metade adormecida: é ali no abismo do sonho, nas profundezas do desejo, que as imagens incandescentes trazem o esplendor da “ verdadeira vida “. Longe de ser ilusão ou escapismo, esta dimensão da vida precisa estabelecer uma nova relação com o mundo da vigília. Hoje o capitalismo é o principal obstáculo para isso: trabalhar, trabalhar e trabalhar sem que o homem expresse/realize suas aspirações( visto que enquanto assalariado ele gera capital para um proprietário) acarreta num mundo em que o desejo é uma caricatura.
O escritor francês André Breton mostrou, com todas as letras do desejo, que a Revolução socialista deverá proporcionar o questionamento da polaridade entre o sonho e a vigília. Esta é uma necessidade libertária já que na sociedade de classes os homens são privados de si mesmos. Em obras como Os Vasos Comunicantes(1932), Breton não apenas torna possível um diálogo entre Lenin e Freud. O cabeça dos surrealistas defende um modo de ação poética que, como já foi sublinhado em outras ocasiões nesta coluna, é da maior importância na luta contra a sociedade da alienação. Caminhando e se perdendo pela cidade, errando com passos livres, estabelecendo livres associações entre objetos/situações e suas necessidades interiores, o poeta interrompe a continuidade de um mundo alienado. Ao dar um passo e abrir-se sem pudor ao acaso, o poeta em seu olhar sonambulamente ativo descobre as energias ocultas dos objetos da cidade(e suas relações com o seu mundo interior). Um conhecimento secreto emerge a partir das “ iluminações profanas “(Benjamin).
Se o espaço do poder econômico capitalista é representado velozmente pelas narrativas da posse e da acumulação, o Surrealismo suspende o tempo da alienação em nome do maravilhoso, em nome de uma liberdade radical. O ritmo do poeta surrealista é outro... A cada esquina, seja sonhando ou acordado, descobre-se outras possibilidades não apenas para o destino individual mas para a história! O caminho do homem está em aberto, a nomeação que os capitalistas fazem da realidade é insuficiente para o desejo. Alguns pensadores marxistas perspicazes perceberam o valor revolucionário da poesia surrealista, que interrompe o tempo do capitalismo e abre novos caminhos no rio do pensamento: o que corre por este rio é a busca do amor desvairado, é a recusa de um modo de existência social, é a abertura para engajar-se na revolução social, é a rebelião contra tudo aquilo que controla e manipula a imaginação.
A posição surrealista choca-se com rígidos padrões estéticos, demole concepções imóveis de beleza: é a beleza convulsiva que Breton defende em Nadja(1928). É a implosão da lógica racionalista do espaço urbano que Louis Aragon apresenta na sua obra prima O Camponês de Paris(1926).
A conduta surrealista faz do desejo a verdadeira luz que move o humano: acasos e sinais do inconsciente são traduzíveis para aqueles que ao entregarem-se à imaginação despediram-se das convenções burguesas. Tudo isto é fundamental para pensarmos a cultura no socialismo.
Não existe nenhum inconveniente teórico em defender a arte política, que expressa o ponto de vista político revolucionário dos trabalhadores na luta de classes, e ao mesmo tempo defender as ideias do Surrealismo. Este último age de acordo com suas peculiaridades filosóficas sobre a luta de classes, exigindo uma atenção maior sobre questões libertárias que até hoje muitos comunistas ignoram. É necessário no plano cultural defender uma plataforma plural de atuação: precisamos escrever e falar incansavelmente(repetidamente, quantas vezes for necessário) que na luta anticapitalista a arte assume diferentes papeis, que contemplam numa mesma trincheira tanto estratégias didáticas/de agitação política, quanto formas destrutivas/abertamente anárquicas.
Aliás não é apenas o Surrealismo que contribui culturalmente com o socialismo mas inúmeros outros movimentos revolucionários do século passado, a serem estudados/aproveitados em suas intuições poéticas.
Uniformidade, rigidez e repressão não fazem parte do cardápio cultural dos marxistas. Deixemos que os medíocres tagarelem sobre aquilo que não conhecem. Mas o que não podemos permitir é que o socialismo seja confundido com as imagens estereotipadas do stalinismo. A luta dos trabalhadores/a luta revolucionária possui muitas formas. O socialismo deve falar a língua do desejo.
Fonte: esquerdadiario.com.br
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