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terça-feira, 29 de novembro de 2011

Escravos de ganho: o trabalho precário nas cidades

 Foto: Centro Potiguar de Cultura - CPC/RN
"Minha Mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na casa de Matacavalos, onde vivera os dous últimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a família Fernandes."
  
O trecho acima, retirado do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, demonstra o quanto era comum a exploração do trabalho escravo fora do domicílio familiar pelos senhores de escravos que viviam nas cidades. Ambientada no Rio de Janeiro do século XIX – as descrições acima são de meados do século – a obra não dá destaque ao trabalho dos negros cativos. Mas Machado de Assis, observador atento e cronista preciso, dá algumas pistas em descrições como a citada acima.

Esta figura pouco conhecida atualmente, a do escravo de ganho, era muito comum no Rio de Janeiro. Como os negros e negras africanos eram considerados bens, valia a pena, para seus senhores, explorar seu trabalho das mais variadas formas. Se, nas fazendas, além do serviço doméstico, cabia-lhes o trabalho na produção e beneficiamento da cana de açúcar ou do café, nas cidades a lida era outra. Os escravos produziam dentro das casas dos senhores as mais variadas mercadorias e eram mandados à rua para vendê-las: frutas, hortaliças, doces, bolos, peixes e alimentos em geral, prontos para consumo ou não; peças de mobiliário; objetos e utensílios como potes, panelas, vassouras, esteiras e cestos; tecidos, peças de vestuário e bordados. Outros tantos escravos urbanos prestavam diversos serviços, como de barbeiro, carregador de mercadorias variadas, faxineiro, carregador de liteira e até em funções mais especializadas, como ferreiro e até ourives. Era comum também serem empregados nas obras como pedreiros, marceneiros e carpinteiros, e ainda em serviços públicos, em funções típicas da época, como a de acendedor de postes. Apregoando suas mercadorias com voz forte e, muitas vezes, cantando e tocando violão ou tambores, estes homens e mulheres cativos estavam integrados de tal forma à vida da cidade que poucas imagens que reproduzem o ambiente urbano do Rio de Janeiro daquela época excluem os escravos de ganho.

Mas a vida destes homens e mulheres não era fácil. Apesar de gozarem do privilégio de trabalhar na rua, muitas vezes longe das vistas de seus senhores, o trabalho era duro, a jornada, longa e, ao final do dia, entregavam grande parcela da féria ao seu dono. Boa parte dos produtos vendidos era produzida na casa dos senhores, o que obrigava os escravos a uma jornada dupla – uma de produção, outra de venda – quase sempre sem excluir o serviço doméstico. E ainda havia a própria situação da escravidão: a falta de liberdade para viver e decidir seu destino, de comer o que lhe fosse dado, viver onde o proprietário designasse. O alento era a remuneração que, mesmo baixa, era poupada para comprar a alforria. Para os escravos urbanos, ao contrário dos rurais, cada dia trabalhado era um passo em direção à liberdade.

Pouca mudança

Hoje, nos grandes centros urbanos, a figura do vendedor ambulante é presença constante. Nas mesmas ruelas do centro antigo do Rio de Janeiro por onde circulavam os escravos de ganho, os camelôs continuam apregoando suas mercadorias. As comidas são outras, os produtos artesanais foram substituídos pelos industrializados, mas a precariedade do trabalho permanece. Muitos camelôs são autônomos, mas há também os que são empregados de algum “empresário” que tem dinheiro para adquirir as mercadorias e paga pessoas para revendê-las nas ruas. Os ambulantes são uma categoria profissional pouco estudada, maciçamente informal, sem garantias trabalhistas ou sociais e, não por acaso, é composta majoritariamente por negros e pardos.

Num momento em que se discute a Agenda do Trabalho Decente, eleita pela CUT como tema prioritário, olhar o passado suscita questionamentos importantes. Pela definição da OIT, trabalho decente é todo aquele que é “adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna a quem o exerce”. Num contexto escravista, onde era uma questão de status possuir escravos – chamados de “peças” – a ideia de dignidade, saúde e condições de trabalho dos cativos sequer existia. Como, na época, as poucas empresas se utilizavam de mão de obra escrava, não havia muitos trabalhadores livres e a maior parte do trabalho era feito por homens e mulheres escravizados. Esta característica do trabalhador da incipiente indústria brasileira é, inclusive, atípica em relação a outros países, onde os operários eram livres, embora miseráveis. Mas, mesmo com a mudança do tipo de trabalho, as condições dos escravos não eram boas e a expectativa de vida dos negros continuou bem menor que a dos brancos.

Sem condições

Com o fim do tráfico de africanos com a Lei Eusébio de Queirós, em 1850, os proprietários de escravos tiveram que mudar um pouco a forma de tratar os cativos. O preço dos escravos aumentou muito e a morte de um deles passou a significar um prejuízo ainda maior, já que, além de perder patrimônio, o proprietário certamente teria que adquirir outro escravo para dar conta do trabalho. Esta mudança, se, por um lado, tornava mais cara e difícil a compra da alforria, por outro, melhorou um pouco as condições de vida. Os senhores passaram a não separar as famílias, como acontecia no início do tráfico negreiro, e às vezes até permitiam que tivessem uma casa – muito simples, pequena e precária – nos limites de sua propriedade. Mas o que estava por trás desta “boa vontade” era o medo de que os escravos se revoltasse em se insurgissem contra seus proprietários. Este temor também provocou outra situação prejudicial à autonomia dos africanos: pouquíssimos eram alfabetizados, já que os portugueses temiam que, dominando a leitura e a escrita, os negros e negras pudessem se informar e se organizar.

Com a abolição da escravidão, em 1888, os negros e negras ficaram desamparados. O historiador Pedro Calmon foi um dos primeiros a ressaltar que o texto da Lei Áurea enviado ao Parlamento do Império tinha um artigo, excluído durante as discussões para sua aprovação, que poderia ter suavizado esta transição. O artigo suprimido determinava que os escravos libertos trabalhassem por dois anos no mesmo local onde se encontravam no momento da abolição, mas recebendo salários. Mas a Lei Áurea foi publicada com somente dois artigos: um que decretava o fim da abolição e outro que determinava que a revogação de todas as disposições em contrário. Talvez, se o tal artigo não tivesse sido suprimido, a situação atual dos afrodescendentes brasileiros pudesse ser menos injusta.

Analfabetos, sem trabalho, sem moradia adequada, sem nenhuma forma de proteção social, os libertos não tinham oportunidades. Os antigos escravos de ganho que tinham uma “profissão” – como os barbeiros, as quituteiras renomadas, alguns artesãos mais qualificados, os que trabalhavam como ferreiros e até ourives, por exemplo – puderam, com muita dificuldade, continuar prestando seus serviços. Mas a maioria ficou presa aos biscates, ao serviço doméstico mais simples, uns poucos continuaram como vendedores – desde que tivessem o que vender. Se, antes, integravam a categoria dos escravos, agora eram homens e mulheres livres e, na maioria, miseráveis.

A exploração do trabalho pouco qualificado e uma abolição feita sem inclusão social empurraram os ex-escravos para o trabalho precário. Como precária ainda é a situação profissional, o acesso aos direitos sociais e garantias trabalhistas, à capacitação, à moradia, à saúde e à educação de uma imensa parcela da população afrodescendente brasileira.
 
Fonte: Da Redação - FEEB-RJ/ES

Um comentário:

  1. Poxa, não sabia desse artigo suprimido da Lei Áurea. Ele teria mesmo amenizado a situação dos negros e pardos. É uma pena que ninguém pense no povo :(

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