Dando início a uma série de reportagens multimídias especiais sobre a relação do movimento estudantil com Belo Horizonte, cidade que sediará o próximo congresso, site da UNE conta a história do encontro clandestino realizado em 1966 dentro de uma Igreja da capital mineira e que venceu a vigilância de cinco mil militares; confira ao final da matéria link para entrevista com o ex-ministro Tarso Genro, que estava presente ao encontro
O ano é 1966. A cidade: Belo Horizonte. Durante uma noite de inverno, um jovem comunista adentra a Igreja de São Francisco de Chagas, no Bairro Carlos Prates, na região noroeste, e espera pacientemente na fila do confessionário para admitir seus pecados. Depois de seguir a liturgia, através dos orifícios de madeira da estrutura antiga, a voz oculta de um frei o orienta a seguir para a cripta do templo por uma escada e um corredor.
Ele vai. Lá embaixo, dá de cara com um estudante que guarda a porta de um salão. O rapaz o encara e afirma: “O maior papa da história foi João XXIII”. O comunista redargue: “Não, foi Paulo VI.” Senha correta, a autorização é concedida para que ele siga.
Dois dias antes, o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) fizera uma blitz e interditara as sedes do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da União Estadual dos Estudantes (UEE-MG). Dez universitários foram presos na ação. Três jovens já haviam sido detidos por militares no edifício Arcângelo Maleta, no centro da capital mineira.
A cidade respirava tensão, com centenas de soldados e seus fuzis ocupando a Praça da Liberdade, em frente ao palácio de onde despachava o então governador Israel Pinheiro, eleito pelo Partido Social Democrata.
Em uma operação de guerra, cinco mil homens do Exército e da Polícia Militar foram destacados para impedir a realização do XXVIII Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE). O grupo escolar Afonso Pena, em frente ao Departamento Estadual de Trânsito, foi transformado em quartel general. A secretaria de Segurança Pública de Minas Gerais expediu uma ordem proibindo que policiais viajassem para fora do estado e o Exército ficou de sobreaviso.
O movimento estudantil andava agitado no estado e no país. Na noite escura de 31 de março de 1964, a primeira medida dos golpistas foi metralhar e incendiar a sede da UNE, na Praia do Flamengo, número 132, no Rio de Janeiro. Em novembro daquele ano, a Lei Suplicy de Lacerda deixaria as entidades estudantis na ilegalidade.
Em junho de 1965 uma greve de sete mil estudantes parou a Universidade de São Paulo (USP). Em julho, a UNE realizou o seu XXVII Congresso de forma clandestina, na Escola Politécnica de São Paulo, e elegeu o sul-mato-grossense Altino Dantas.
(* Na foto, uma estudante é detida por policias durante o Congresso clandestino da UNE em BH)
DO PORÃO, A ELEIÇÃO
José Luis Guedes foi eleito durante o Congresso clandestino de 1966, em Belo Horizonte
Um ano depois, naquele fatídico dia 28 de julho de 1966, o jovem comunista que adentrara a Igreja de São Francisco de Chagas, em Belo Horizonte, figurava no ranking de estudantes mais odiados pela repressão no país. Cerca de cinco horas depois, de madrugada, ele sairia sorrateiramente do templo católico como presidente eleito da UNE e se refugiaria em Araguari, no Triângulo Mineiro, por uma semana. Depois, seguiria para São Paulo por algumas semanas e só posteriormente para o Rio de Janeiro, onde transformaria o apartamento alugado por um tio figurinista na esquina da Rua Barata Ribeiro com a Travessa Duvivier, em Copacabana, em sua casa e na sede informal e temporária da entidade. Seu nome: José Luís Guedes.
“Entrei na igreja e confessei direitinho, como mandam os cânones. Só depois o frei me mostrou qual escada que eu tinha que descer”, narra Guedes, mineiro de Juiz de Fora.
Muitos estudantes entraram no templo durante as missas, para camuflar a movimentação. No espaço escuro e abafado do porão da igreja, mais de cem pessoas do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul do país discutiam apreensivos a situação política da nação.
“Nós não sabíamos como seria o congresso. Entramos em grupos pequenos, para tapear a repressão. Eu nunca tinha entrado naquela igreja”, relembra Luiz Marcos de Magalhães Gomes, o Luizinho, um dos vice-presidentes da UNE eleitos naquele congresso.
Segundo ele, na maior parte do tempo não houve uma mesa formal conduzindo os trabalhos pois o espaço era impróprio para discussão. “Era mais um ajuntamento. Todo mundo em pé, apertado, debatendo. E no final nós conseguimos realizar o congresso e eleger a diretoria”, relembra.
Já Guedes recorda que a dinâmica caminhou em torno de teses: “Trabalhamos muito para que o congresso saísse com as teses aprovadas. Uma coisa importante eram os acordos MEC-Usaid, a outra a Lei Suplicy de Lacerda”, lembra. Esses acordos foram celebrados entre o governo brasileiro e a Agência de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (na sigla em inglês, Usaid), e alteravam a estrutura das universidades, restringindo o ambiente de liberdade de expressão e de pensamento e foram rechaçados pela UNE.
OS FRANCISCANOS
A articulação entre os estudantes e franciscanos para a realização do Congresso ficou por conta da aluna de ciências sociais da UFMG, Zélia Castilho, então ateia fervorosa e marxista-leninista. “Meus pais moravam ao lado da Igreja de São Francisco, e eu então bati lá e conversei com os frades. Eram holandeses que tinham uma tradição de engajamento social. Meu pai era delegado, dizia que o congresso não ia acontecer. Eu disse a ele que seria no Convento dos Dominicanos, na Serra [bairro da Zona Centro-Sul de BH]”, conta.
> Veja vídeo gravado com Zélia Castilho na igreja que sediou o Congresso:
Mediante a negociação com Zélia, os freis Hidelberto Polman e Guido Wlaman consentiram em receber os estudantes usando o argumento da caridade cristã, e eles assinaram um documento dizendo que congresso não haveria ali. As entidades estudantis orientaram seus delegados a procurarem o endereço do convento assim que chegassem em Belo Horizonte. Vindos de todo o país, muitos jovens ficaram de fato hospedados com os dominicanos. Um grande contingente também ficou em casas de universitários e de parentes. Como gostava de desenhar, Zélia fez croquis da planta da igreja que circularam entre a militância. Durante o congresso ela ficou de vigília do lado de fora do prédio.
Mesmo com a enorme operação da polícia para impedir a realização do XXVIII Congresso da UNE, com 5 mil homens da Polícia Militar e do Exército mobilizados, a diretoria da entidade divulgou uma nota corajosa uma semana antes da data marcada para o evento. O texto falava que ele seria realizado no Convento dos Dominicanos.
“Não é a primeira vez que a UNE, entidade legal, registrada na Guabara, luta contra a ditadura. (…) O Congresso é garantido pela Constituição Federal, além de representar a vontade dos universitários brasileiros, razão por que se confirma o convite a todos os estudantes para que dele participem”, dizia o documento publicado pela imprensa nacional.
O setor progressista da igreja católica vinha se mostrando simpático ao movimento estudantil e a violência contra manifestantes universitários, quando a polícia invadiu a Igreja de São José em Belo Horizonte, no primeiro semestre de 1966, contribuiu para fortalecer o laço dos estudantes com os católicos. O próprio José Luís Guedes militava pela Juventude Estudantil Católica (JEC) e posteriormente seguiu Ação Popular.
Com intuito de confundir a repressão, a UEE de Minas e líderes estudantis universitários e secundaristas organizaram ações de fachada e insistiram na tese de que o Congresso se realizaria no Convento dos Dominicanos. “Foi o grande drible. Os dominicanos foram muito importantes, nossos aliados até 1969. E nós enganamos a repressão. Nós vencemos a repressão”, afirma Guedes.
CONSTRANGIMENTO
Após a divulgação de que o Congresso tinha ocorrido na cripta da igreja do Bairro Carlos Prates, os frades sofreram forte constrangimento dos militares e até de secretários da Prefeitura de Belo Horizonte. Hidelberto Polman e Guido Wlaman tiveram de depor no Dops e mostraram o documento assinado pelos estudantes dizendo que não haveria Congresso dentro da igreja.
À imprensa, disseram que o convescote não havia ocorrido. Já Zélia Castilho acredita que “eles tiveram de dizer isso para se proteger politicamente, mas sabiam – ou podiam intuir – o que os estudantes fariam dentro do porão”. Em matéria de 1966 do Jornal Diário da Tarde, Frei Polman disse que teve duas preocupações naquele final de julho de 1966: que a reunião proibida não ocorresse e a falta de alimentação dos estudantes. Contou também que ralhou com os jovens quando os flagrou escrevendo um manifesto à luz de velas de madrugada. Mesmo assim, o holandês não conseguiu esconder sua admiração por: “terem-se deslocado de tão longe em busca da realização de seus ideais.”
CONGRESSO DA UEE-MG
Recorte de jornal da época
Se tudo corresse de acordo com os planos da direção da UEE-MG, seu Congresso de 1966 se realizaria realizado na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, tendo Dom Helder Câmara como pupilo, mas o acirramento de ânimos em Belo Horizonte e o tom ameaçador dos militares fez com a entidade recuasse. A prisão de oito universitários em abril causou comoção e levou mais de mil estudantes a acamparem em frente ao Palácio da Liberdade.
Devido a um atentado contra a União Estadual dos Estudantes durante a realização do Congresso, foi realizado um plebiscito em todo o estado para que se decidisse o sistema de votação da nova diretoria. “Para responder ao ataque da direita e da repressão, nós fomos para uma frente mais avançada. Tivemos que utilizar eleições diretas e o movimento de massas ganhou muita força. Percorremos as universidades de sala em sala, foi um trabalho hercúleo. Conseguimos reorganizar o movimento estudantil até os conselhos deliberativos das entidades”, afirma José Luís Guedes.
Para se inscrever era preciso mil assinaturas de universitários, cem delas do interior do estado. A vitória de Guedes, estudante de medicina da UFMG, alavancou seu nome para o Congresso da UNE que ocorreria na sequência.
Fonte: UNE
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