Na terça, depois da minha aula inaugural na UFRJ, uma aluna, a Eliza, me contou que um amigo dela, Henrique, estava sendo processado por fazer um protesto pacífico contra o aumento de 60% da barca de Niterói. E que páginas no Facebook e vídeos no YouTube referentes à manifestação sumiam logo depois de postados. Pedi a Eliza pra pedir ao Henrique um guest post sobre o assunto. Ninguém precisa morar no Rio para perceber que o direito de protestar não pode ser tirado de nós.
Protestar agora virou crime. Um crime que segundo a liminar que recebi coloca em risco a população do estado do Rio de Janeiro. Meu nome é Henrique, tenho 25 anos e sou um professor de História morador de Niterói que está sendo processado pela empresa Barcas S/A por ter protestado contra o aumento de mais de 60 por cento no valor da tarifa. Todos nós brasileiros estamos sentindo na pele o quanto as coisas estão se tornando caras. E isso não se resume somente ao estado do Rio. O tão famoso crescimento econômico propagado a quatro cantos é uma ilusão, uma bolha de sabão. Sou professor do estado do Rio de Janeiro e o meu salário é de obscenos R$ 765,00. A greve da categoria do ano passado conseguiu reajustes ínfimos e ainda houve professor que teve salário descontado. Isso sem falar no caso de outros estados como Belo Horizonte e Fortaleza.
Em dezembro, quando foi aprovado o valor da passagem das barcas de R$ 2,80 para 4,50, o meu sentimento de revolta foi tão grande que protestar frente a isso era a única opção que eu via na minha frente. Os moradores da região metropolitana do Rio de Janeiro que se utilizam das barcas sabem das condições precárias das embarcações, dos acidentes frequentes, dos coletes sem data de validade e dos extintores de incêndio que não existem. As embarcações volta e meia ficam à deriva na baía, deixando os passageiros por horas esperando por auxílio. Como ponto final há pequenas baratinhas que gostam de caminhar pelo chão e pelas paredes da barca exibindo para nós todo o descaso da empresa. Impossível não se sentir profundamente lesado como cidadão e como ser humano. Impossível não se revoltar.
E foi isso o que eu fiz. Comprei uma inocente cartolina e tintas guaches e fiz um cartaz que dizia o seguinte: “Filas, atrasos e acidentes, tudo isso por apenas 4,50”. Foi no dia 3 de fevereiro. Empunhei esse cartaz na estação, ainda em Niterói, e um segurança ordenou que eu o abaixasse. Ciente da minha liberdade de expressão continuei empunhando o cartaz. O segurança chamou um policial que veio falar comigo. Nesse momento o sinal da barca para o Rio soou. Quando desembarquei na estação da Praça XV no Rio, uma funcionária das Barcas S/A que não estava identificada veio com uma câmera me filmar ordenando que eu abaixasse aquele cartaz. Lembro de ter olhado para a câmera e ter dito: Nunca! Aquilo era só o começo de coisas muitos piores que estavam por vir por parte da empresa Barcas S/A.
Publiquei no meu perfil no Facebook uma foto minha com o cartaz e com o relato do ocorrido. A foto teve mais de 2000 compartilhamentos, e uma manifestação espontânea foi convocada para o dia 10 de fevereiro. No dia da manifestação os seguranças ordenaram que baixássemos os cartazes e utilizaram a força para nos retirar da estação. Um segurança de dentro da barca chegou a tirar da minha mão um cartaz e amassá-lo. Nos autofalantes da embarcação o capitão ordenou que se não abaixássemos os cartazes, a força policial teria que ser chamada. O apoio dos passageiros foi unânime, todos gritaram em nossa defesa e vaiaram a empresa.
A mobilização que já vinha crescendo frente a esse aumento abusivo só fez crescer. Uma grande manifestação foi marcada para o dia 1º de março, dia em que a nova tarifa entraria em vigor. Desde o início de fevereiro começaram panfletagens e coletas de assinaturas para um abaixo-assinado, que foi entregue ao Ministério Público no dia 7 de março. Todo o tempo em que estávamos em frente das barcas realizando essas atividades os funcionários da empresa nos fotografavam e nos filmavam como se fossemos criminosos. Eles estavam arrumando provas para sua ofensiva.
Tal ofensiva veio no dia 24 de fevereiro, quando recebi a visita de um oficial da Justiça em minha casa com um mandado de intimação para eu depor na 76º DP de Niterói, a fim de esclarecer os pontos de apologia do crime e incitação ao crime ou criminoso. Como se isso não bastasse no dia 29 de fevereiro, horas antes da manifestação do dia 1º de março, recebi a visita de outro oficial de justiça que vinha agora com uma liminar expedida por um juiz da 46º vara cível. A liminar era direcionada contra mim e o PSOL. Para os advogados da empresa eu era um militante do PSOL e isso por si só parecia constituir algo suspeito. Não sou filiado a partido algum e mesmo se fosse, a obscenidade da ação seria a mesma. No texto da liminar dizia que eu e o PSOL teríamos que pagar uma multa de 5 milhões de reais caso houvesse alguma confusão no protesto que colocasse em risco o patrimônio da empresa e a segurança da população do estado do Rio de Janeiro. Fui acusado de ser mentor intelectual do protesto e de botar em risco a segurança da população do Rio de Janeiro e de Niterói -- assim estava escrito no texto dos advogados das Barcas S/A. Os advogados destacaram que eu tinha feito uso da internet para convocar os protestos, como se o fato de eu me utilizar da internet tornasse as coisas mais graves.
Quando estive na delegacia, havia uma pasta com o meu perfil e o de outros manifestantes que foram intimados a depor. O delegado parecia não saber muito da dinâmica do Facebook, o que coloca em dúvida quem de fato reuniu aqueles perfis naquela pasta. No dia do protesto a polícia arbitrariamente invadiu o campus da UFF, um terreno federal, para procurar, baseada numa denúncia anônima, coquetéis molotov e drogas da liderança de um protesto que foi pacífico e lúdico.
Há aqui um ponto muito grave que precisa ser denunciado: a repressão aos protestos na rede. Todos sabemos de perfis que somem misteriosamente no Facebook, do quanto declarações e vídeos compartilhados nas redes sociais são apresentados como provas para a condenação e intimação de manifestantes. Como nos tempos da ditadura, alguns perfis vão sumindo e algumas comunidades banidas. Nos resta então a certeza de que é preciso ocupar as ruas antes que comecemos a desaparecer no espaço da rua também. E isso já vem acontecendo em muitos países.
Sendo assim Zumbi corre perigo, Canudos corre perigo. Contestado corre perigo. A revolta da Vacina corre perigo. A passeata dos 100 mil corre perigo, assim como Herzog, Chico Mendes e todos aqueles que lutaram pela justiça na história desse nosso país. A perseguição a um partido político nesse momento nos lembra o quanto os partidos de esquerda foram perseguidos nos anos que antecederam ao golpe militar. Sempre que vemos uma manifestação popular ser silenciada, é como se todos aqueles que lutaram pela justiça fossem também silenciados. Mas para quem exige que eu cale meu direito legítimo de protestar, eu grito: Nunca!
Fonte: Escreva Lola Escreva
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