Protesto em 2014, durante reunião da Comissão Especial da Câmara que analisava o Plano Nacional de Educação |
O projeto da direita para a educação dissemina concepções e práticas preconceituosas, discriminatórias e excludentes.
É no contexto do golpe político em curso no Brasil de 2016 que situamos a análise do Projeto Escola Sem Partido (PLS 193/2016, PL 1411/2015 e PL 867/2015). Esse projeto visa eliminar a discussão ideológica no ambiente escolar, restringir os conteúdos de ensino a partir de uma pretensa ideia de neutralidade do conhecimento.
Trata-se de uma elaboração que contraria o princípio constitucional do pluralismo de ideiase de concepções pedagógicas, assim como o da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, considerando como válidos determinados conteúdos que servem à manutenção do status quo e como doutrinários aqueles que representam uma visão crítica.
Em recente Nota Técnica, o Ministério Público considera que o PL Escola sem Partido é inconstitucional porque “está na contramão dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, especialmente os de ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária’ e de ‘promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
É importante dizer que dois projetos idênticos tramitam na Câmara e no Senado Federal, de autoria do deputado Izalci (PSDB-DF) e do senador Magno Malta (PR-ES), respectivamente, que pretendem alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação para a inclusão do “Programa Escola Sem Partido”.
O complemento ao cerceamento da liberdade de aprender e ensinar fica por conta do PL de autoria do deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), que pretende alterar o Código Penal, para inclusão de detenção de três meses a um ano para professor, coordenador, educador, orientador educacional ou psicólogo escolar que praticar o dito “assédio ideológico”.
O movimento político de direita na educação, “Escola Sem Partido”, que dissemina concepções e práticas preconceituosas, discriminatórias e excludentes, foi impulsionado nacionalmente para propagar ideia de que os estudantes são alvo de doutrinação política e de que os valores morais da família são afrontados por uma suposta ideologia de gênero na escola.
O projeto “Escola sem Partido”, com seus propósitos de eliminação da política como esfera de debate e formação do pensamento livre, tornou-se um instrumento de disputa para respaldar os retrocessos no campo dos Direitos Humanos que se efetivam com o Golpe de 2016.
A estratégia do movimento chamado “Escola Sem partido” é enfrentar o projeto político educacional de transformação que exigiu rupturas com a concepção de educação fundamentada na visão elitista, conservadora, meritocrática, mercadológica e patriarcal que se revelava discriminatória, segregadora e excludente.
O transcurso das políticas educacionais em construção sofreu várias investidas de setores conservadores, especialmente de setores privatistas da educação que, aliados às bancadas fundamentalistas no Congresso Nacional, alcançaram força para aprovar retrocessos.
Os limites do projeto de educação democrática em curso para a superação de velhos paradigmas se evidenciavam em diversos momentos de sua implementação. Tal projeto foi abalado com a interrupção da disseminação de materiais pedagógicos para o enfrentamento à homofobia nas escolas públicas e durante a aprovação do Plano Nacional de Educação e respectivos planos estaduais e municipais, quando enfrentou a campanha ideológica conservadora para eliminação de qualquer menção às questões de gênero e orientação sexual.
Além do confronto legislativo, tais setores passaram a interferir na condução das políticas em curso, como o cancelamento do Comitê de Gênero no âmbito do MEC. Entre outras ações nesta linha, estão ataques a iniciativas que afirmam a educação para a igualdade de gênero, o respeito e a valorização das diferenças, compreendendo a importância da abordagem contextualizada da educação em direitos humanos, da ética e da cidadania.
Não é aleatório o fato de que o golpe do impeachment ocorrido no Brasil, fomentado pela elite patriarcal, conservadora e privatista, tem na educação seu principal alvo de retrocesso. A escolha de um ministro do partido herdeiro da Arena, partido sustentáculo da Ditadura Militar, o DEM, que entrou com ações na justiça contra o Programa Universidade para Todos (Prouni) e a Lei das Cotas é extremamente simbólica.
Sua gestão, uma vez que esse projeto perdeu nas urnas, se inicia com uma aproximação com setores reacionários que defendem uma educação acrítica, apolítica, contra as cotas sociais e raciais, fazendo sua primeira reunião pública com representantes do grupo ultra conservador “Revoltados Online”, que assumidamente faz apologia ao estupro, ao racismo, à xenofobia, à redução da maioridade penal e que defende o Projeto “Escola Sem Partido”.
Cabe lembrar que o golpe foi forjado em um contexto de propagação do ódio, de um jogo midiático da encarnação do “mal” em militantes de esquerda, especialmente petistas, de incitação à violência contra feministas, população LGBT e ativistas de movimentos sociais e dos Direitos Humanos.
É nessa conjuntura de ataques aos Direitos Humanos que se situa o Projeto Escola Sem Partido, estabelecendo como princípios da educação nacional: neutralidade política, ideológica e religiosa; reconhecimento da vulnerabilidade do educando; liberdade de consciência e de crença; e direito dos pais que seus filhos recebam a educação moral de acordo com suas próprias convicções.
Com tais diretrizes, esse projeto determina aos professores a obrigatoriedade de manter uma pretensa neutralidade no ambiente escolar, afirmando que os docentes não podem veicular conteúdos que possam induzir aos estudantes em assuntos religiosos, políticos e ideológicos.
A ideia central do projeto é de que seria possível e desejável uma desvinculação entre os conhecimentos científicos e os posicionamentos ideológicos, políticos e culturais. O que faz, porém, é delimitar, a partir de um único ponto de vista, o que é considerado ideológico e o que é válido como conhecimento científico, ignorando que todo conhecimento é fruto de uma elaboração que atende às perspectivas sócio-histórico-político-culturais. Todo conhecimento, portanto, é ideológico!
Considera-se que o PL “Escola Sem Partido” impõe uma condição de tutela aos estudantes, descritos como seres “vulneráveis” no processo educacional, e que elimina a liberdade de ensino e aprendizagem, privando os estudantes da construção de consciência crítica, como se fossem incapazes de construir suas próprias sínteses, reflexões, posições e precisassem estar sob tutela de "leis de mordaça”.
Também, esse projeto transforma o ato educativo em uma mera reprodução e expressão do poder vigente, rotulando toda abordagem crítica como subversiva à ordem social e aos padrões morais da família e os educadores como doutrinadores, sobre os quais deve recair a condição de obediência à ideologia do golpe.
O PL veda ainda, em sala de aula, “a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”. Convicções morais que sejam preconceituosas, homofóbicas e racistas não devem justamente ser desconstruídas?
Trata-se de um retrocesso que impede a construção de projetos pedagógicos que possibilitem a escola de promover a reflexão crítica e plural, conforme prevê a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional (LDB).
Essa determinação contesta o direito de aprendizagem como resultado de uma política de responsabilidade do Estado e da família, com a colaboração da sociedade e impõe o poder absoluto da família sobre as crianças, adolescentes e jovens, proibindo seu acesso a uma educação democrática, laica, inclusiva e emancipatória que se constitui em ambientes plurais de convivência educacional de livre debate em torno de ideias e concepções.
A ideia de uma “educação moral” dissociada dos demais conteúdos escolares não encontra respaldo legal e representa um risco para os estudantes, que se tornam reféns de único pensamento, o que lhes retira a liberdade de acesso a conhecimentos essenciais para garantia de sua formação integral e para sua elaboração no campo afetivo, emocional, político, cultural e social.
Também, o projeto fere liberdade de cátedra e o princípio da gestão democrática da escola, violando a Constituição, e ignorando a LDB, que define a autonomia administrativa e pedagógica dos sistemas de ensino e orienta a elaboração de propostas curriculares com base nas diretrizes curriculares estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).
A institucionalização do “Programa Escola sem Partido”, portanto, representa o desmonte do percurso de construção democrática no campo da educação nacional, após mais de 20 anos de ditadura militar.
Trata-se de um projeto que retoma os mecanismos utilizados no período da ditadura, que impôs conteúdos e metodologias de ensino de acordo com a ideologia do golpe de 1964, que estabeleceu a censura a determinados autores alegando doutrinação ideológica e que determinou a perseguição e a repressão contra educadores não coniventes.
Esse programa, em 2016, relembra as conspirações usadas nesse período para criar um clima de atentado à moral e aos costumes da família, de violação de consciências por educadores ditos doutrinadores comunistas e de que a sociedade corria riscos, repetindo os ataques aos educadores vistos como ameaça aos interesses dominantes.
Paulo Freire, tão criticado pelos defensores do Projeto “Escola Sem Partido”, torna-se ainda mais atual diante de tamanha tentativa de retrocesso que vem sendo imposta à educação, como se observa revendo obras como Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa:
“Creio que nunca precisou o professor progressista estar tão advertido quanto hoje em face da esperteza com que a ideologia dominante insinua a neutralidade da educação. Desse ponto de vista, que é reacionário, o espaço pedagógico, neutro por excelência, é aquele em que se treinam os alunos para práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira neutra. Minha presença de professor, que não pode passar despercebida dos alunos na classe e na escola, é uma presença em si política. Enquanto presença não posso ser uma omissão, mas um sujeito de opções. Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de comparar, a avaliar, de decidir, de optar, de romper. Minha capacidade de fazer justiça, de não falhar à verdade. Ético, por isso mesmo, tem que ser o meu testemunho." (Freire, 1996, p. 38)
*Claudia Dutra é educadora e foi Diretora Políticas de Educação em Direitos Humanos e Cidadania do MEC. Camila Moreno é ativista dos Direitos Humanos e foi Coordenadora Geral de Direitos Humanos e Cidadania do MEC.
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